Interdisciplinaridade e o fim da divisão clássica de matérias para estudo é o que vai ser a melhor forma de aprendizado?
A recente notícia que a Finlândia pretenderia abolir a divisão clássica de disciplinas em seu sistema de ensino – informação que a seguir foi esclarecida formalmente como sendo um estudo, e não ainda um decreto governamental – fez com que muita gente questionasse se isso é algo viável, recomendável e, principalmente no caso do Brasil, a solução para a baixa qualidade do ensino. Para entender melhor o que isso representa em termos de Educação o mestre e doutor em Educação pela PUC São Paulo Manolo Perez Vilches é quem responde esta e outras questões.
P: O que a Finlândia pretende fazer, em médio prazo, com a Educação é abolir a separação de matérias, que é o modo como estuda e estudou boa parte da população mundial. Isso é algo que remete ao conceito de interdisciplinaridade, pode-se considerar então uma inovação em termos de ensino?
R: Não se vê aqui nenhuma invenção ou novidade, já que há décadas, escolas do mundo todo trabalham a integração disciplinar (ou a Multidisciplinaridade) em estudos de campo, trabalhos ou temas transversais que além de eliminar divisões disciplinares permitem o trabalho de jovens de diferentes idades nas atividades. A novidade reside talvez no fato de que não havia ainda registro de um sistema global que trabalhasse desta forma em toda escolarização (do Ensino Infantil ao Ensino Médio) como pretenderiam os finlandeses. Isso foi motivo para que muitas pessoas no Brasil e no mundo (entre educadores, pais, alunos e leigos em geral) discutissem o tema.
P: O que representam conceitos de Interdisciplinaridade, Multidisciplinaridade e Transdisciplinaridade?
R: É difícil responder a esta pergunta de forma rápida pois os três vocábulos encerram conceitos distintos e vão muito além da interpretação de prefixos. Vamos colocar em linhas gerais que a Multidisciplinaridade é a ação conjunta de várias disciplinas na abordagem de um tema sem a necessidade de troca de metodologias ou conceitos entre elas; a Interdisciplinaridade seria uma possibilidade de conhecimento pela atitude entre os sujeitos pedagógicos de modo que a estrutura metodológica de um disciplina possa ser utilizada como caminho para outras e vice-versa até que se vivencie um saber sem rótulos; a Transdisciplinaridade é a superação das próprias disciplinas por um pensamento que ultrapassa conceitos e tenta atingir o todo por uma organização a ser construída. De qualquer forma não basta abolir disciplinas para ter a certeza de que se está praticando uma ação dentro de um destes conceitos, é necessário muito mais!!!
P: Um os aspectos relevantes e que chamou a atenção sobre esta eventual mudança foi ter partido de um país que tem na Educação um valor ao qual é destinado um investimento significativo. Isso pode ser analisado também pela ótica brasileira?
R: Para começar, temos na população da Finlândia um número bem menor que na brasileira, já que dos 5,5 milhões de finlandeses, apenas 1,4 milhão tem menos de 17 anos, o que coloca no ensino básico e secundário apenas 950 mil jovens. A quase totalidade das escolas em todos os níveis, da iniciação à universidade, é pública. A profissão de professor é uma das mais respeitadas, e requer atualização constante; tem remuneração considerada justa, o que explica a ausência de greves ou manifestações do tipo. Na Finlândia, o ensino é obrigatório apenas dos sete aos 16 anos. Entra-se tarde na escola pois se acredita que a vivência familiar é fundamental até os sete anos para consolidação, na infância, dos valores culturais e morais. Em nove anos de escolarização aprende-se praticamente o mesmo que nos 11 anos da nossa escolarização. No modelo finlandês, cursa o ensino secundário apenas quem quer, entretanto apenas 1% dos estudantes que concluem o ensino básico para os estudos; ainda assim, o nível de cultura e informação já capacita para o mercado de trabalho, em atividades que não exigem o ensino universitário mas que precisam de um mínimo de conhecimento e aplicação. Por estes números já se pode notar a diferença imensa existente entre o modelo finlandês e o brasileiro, que carece de um planejamento de médio e longos prazos, investimento adequado e sobretudo valorização do conhecimento.
P: Podemos analisar a situação educacional da Finlândia levando em conta que lá, mesmo em cargos mais simples os profissionais são graduados, pois que a diferença salarial não é tão expressiva como aqui em nosso país?
R: O país em questão vem de anos de planejamento econômico e educacional que tem permitido focar no conhecimento para o desenvolvimento. Sem dúvida que lá a diferença salarial e de status social destas atividades com as demais (médicos, engenheiros, professores, etc.) é mínima, o que não torna esta situação um problema, sendo tudo isto muito natural. Talvez nisso esteja a explicação para a diferença do que ocorre nas escolas da Finlândia e que não pode ser seguido à risca em outros países, como o nosso, sem que se atinja primeiramente um grau social de igualdade e desenvolvimento. Vale lembrar que na Finlândia o Ensino Médio (ou secundário) já tem um papel fundamental no preparo extra para o mercado de trabalho, tanto que após a educação básica, a educação secundária já se divide em vocacional (técnica, com enfoque no mercado de trabalho) e acadêmica (com preparo para a especialização em cursos universitários subsequentes).
P: No Brasil, querer implantar uma educação que seja interdisciplinar desde o Ensino Médio é algo que pode ser gradualmente feito, ou ao menos experienciado?
R: Falar em abordar temas disciplinares em vivências conjuntas que recriam o ambiente profissionalizante, como sugerido pelos finlandeses, faz sentido levando-se em conta que os estudantes já têm uma base de saberes construídos na educação básica anterior. Será fácil e interessante mostrar como se faz um livro contábil a estudantes que já dominam as operações matemáticas básicas, ou falar de matemática financeira aplicada se os mesmos alunos já estudaram logaritmos e operações com calculadoras científicas. Falar em Comunicação voltada ao turismo também tem sentido num país como o Brasil, que pretende investir na indústria do turismo como importante fonte de postos de serviços, além de valorizar o aprendizado de idiomas, como alguns exemplos. Porém, antes de tudo isso é preciso analisar o cenário educacional de forma criteriosa, e planejar adequadamente para que tudo isso enriqueça a experiência do aprendizado. Vale lembrar que é já possível agir interdisciplinarmente, dentro de qualquer modelo educacional, mas será difícil garantir que isto ocorra em todas as realidades do país. Muitos fatores precisam ser revistos e considerados.
P: Em sua opinião, como um pesquisador da Educação, o que deve ser proposto para que nossa escola atenda a uma sociedade mais preparada, e formas de ensino e pesquisa mais motivadoras e atuais?
R: No sistema atual brasileiro muitos professores percebem grande diferença de bagagens educacionais entre os estudantes em todos os níveis. Não temos a educação infantil alicerçada nos valores passados pela família (fato que expõe os professores à atual situação de desvalorização moral, afetiva, social e econômica na estrutura); não temos o Ensino Fundamental valorizando a relação aluno – professor – família – sociedade; não temos um Ensino Médio compromissado com a cidadania e chega-se a uma Universidade que não forma profissionais de competência por acúmulo de deficiências. O Ensino Médio, antes mesmo de dar conta de ser profissionalizante necessita, no Brasil, apurar saberes básicos. É notável a taxa de estudantes que chegam ao Ensino Médio em situação de analfabetismo funcional e que avançam ao Ensino Superior na mesma situação. Este quadro explica parte da atual condição brasileira de ineficiência trabalhista em todos os setores e níveis.
Dadas as diferenças de remuneração, prestígio e principalmente de formação, não há eficiência, não há produtividade e multiplica-se ainda mais a desigualdade social. Acabar com as disciplinas é um sonho para muitos que almejam a valorização do homem global, capacitado plenamente a viver em sociedade, mas experiências como esta só são possíveis em casos específicos, como colocam os próprios professores finlandeses. Trabalhar sem a disciplinaridade exige, além da ousadia, a formação de um professor com novas características, capaz de transitar sem sustos entre sua formação disciplinar necessária e a nova realidade interdisciplinar. O problema da Educação nem sempre reside no modelo educacional adotado. Precisamos prestar atenção em todas as variáveis e principalmente nas diferenças de realidade, e valorizar a competência de todos agentes pedagógicos, com o resgate, a todo instante, do conceito de cidadania. Posso dizer que muito já se fez e ainda se faz para tentar melhorar da Educação no Brasil, a todo instante; há milhares de professores, escolas e estruturas para isso, mas a situação socioeconômica discrepante faz com que continue havendo lacunas que comprometem o todo.